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Relato do Grupo de Leitura - Crítica à Razão Dualista" de Chico de Oliveira (Celebração 50 anos)



Escrito por: Mariana N. Nascimento


No mês de maio a EFOP Vânia Bambirra realizou quatro encontros para debater os textos “Crítica à Razão Dualista” e “O Ornitorrinco", de Francisco de Oliveira, sendo o primeiro publicado em 1972 como ensaio e como livro em 1973 durante o governo Médici. E o segundo texto, publicado como ensaio em julho de 2003, contemporâneo ao início do primeiro governo do Partido dos Trabalhadores.


O estudo de ambos os textos pertence à Cátedra de Estudos sobre o Brasil e sua formação social e teve como objetivo debater a produção de Chico de Oliveira e as questões que traz em seus textos, além de também ser uma homenagem aos 50 anos de publicação do primeiro texto que veio a se tornar um clássico sobre a formação social brasileira. Os Grupos de Leitura da EFOP Vânia Bambirra são destinados ao estudo de obras específicas e de curta duração. Os encontros aconteceram nos dias 09, 16, 23 e 30 de maio. Nos três primeiros foram discutidos as seis partes que compõem a “Crítica à Razão Dualista” e no último encontro foi discutido o ensaio “O Ornitorrinco”.


No presente texto estão sistematizadas as principais contribuições das obras selecionadas para o Grupo de Leitura comemorativo dos 50 anos do primeiro texto. Ao final serão apresentadas em linhas gerais o debate que se produziu nos encontros citados.


Da Crítica à razão dualista


Chico de Oliveira, em “Crítica à razão dualista”, apresenta na primeira parte do texto a crítica ao pensamento econômico vigente no Brasil. Suas críticas são dirigidas aos quadros intelectuais ligados à Cepal, autores como José Serra, Fernando Henrique Cardoso, entre outros. Para o autor, há uma dualidade entre pensar teoricamente a economia e as mazelas vividas pela classe trabalhadora na América Latina: “O ‘economicismo’ das análises que isolam as condições econômicas das políticas é um vício metodológico que anda de par com a recusa em reconhecer-se como ideologia” (OLIVEIRA, F. 2013 P. 30). Como efeito, essa separação leva a proposições reformistas, uma vez que faz análises em separado de questões que se metabolizam juntas.


Assim, a noção de subdesenvolvimento na América Latina, passa a ser compreendida como uma formação histórica-econômica, numa dualidade entre o que é considerado “atrasado” e o que é considerado “moderno”. Como se houvesse um caminho até as formas mais avançadas do desenvolvimento socioeconômico. Porém, o que essa compreensão escamoteia é que essa oposição é formal. Nas palavras de Chico de Oliveira: “o processo real mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários, em que o chamado ‘moderno’ cresce e se alimenta da existência do ‘atrasado’” (OLIVEIRA, F. 2013. P. 32).


Compreender a condição do chamado subdesenvolvimento deve passar pela compreensão de que ele é um produto da expansão capitalista. Não é, portanto, uma oposição entre nações mais ou menos desenvolvidas, mas sim resultado próprio do desenvolvimento capitalista, para o autor, “oposição entre as classes internas” (OLIVEIRA, F. 2013 P.. 33). E retirar a luta de classes do centro da análise sobre a economia na América Latina cumpre função ideológica, “justamente no período em que, com a transformação da economia de base agrária para industrial-urbana, as condições objetivas daquelas se agravavam. A teoria do subdesenvolvimento foi, assim, a ideologia própria do chamado período populista [1930-1964], se ela hoje não cumpre esse papel, é porque a hegemonia de uma classe se afirmou de tal modo que a face já não precisa de máscara” (OLIVEIRA, F. 2013 P. 34).


Na segunda parte do texto, Chico de Oliveira apresenta o processo de acumulação e o desenvolvimento capitalista no período e enumera alguns aspectos que influenciaram neste processo, analisando a passagem da economia brasileira de agro-exportadora para urbano-industrial.


Em suma: 1) A função de beneficiar a acumulação capitalista e a formação do exército industrial de reserva que cumpriu a regulamentação das relações entre trabalho e capital expressas na legislação trabalhista e a regulamentação do preço da força de trabalho na criação do salário mínimo, interpretado como salário de subsistência (de reprodução). 2) A interferência do Estado favorecendo as condições de acumulação, com subsídios, investimento em infraestrutura e na produção, expansão de créditos, etc. 3) O modo de produção agrícola, o padrão de vida e situação de trabalho das massas rurais repercutem no baixo custo da reprodução da força de trabalho urbana e também, novamente, no baixo preço da força de trabalho.


Oliveira redefine para o contexto o conceito de “acumulação primitiva” marxiano, dando um novo contorno, segundo o autor, não se trata mais da expropriação da terra, mas sim da expropriação do excedente que se forma pela posse transitória da terra: “a cumulação primiriava não se dá apenas na gênese do capitalismo: em certas condições específicas, principalmente quando esse capitalismo cresce por elaboração de periferias, a acumulação primitiva é estrutural e não apenas genérica” (OLIVEIRA, F. 2013 P. 43). A relação entre a aceleração dos incrementos industriais e a manutenção de um certo modo de produção primitivo na agricultura se relacionam de forma dialética e não dual.


Ainda, o autor chama atenção para o incremento nos postos de trabalho no setor terciário, ou de serviços, e como estes têm seu desenvolvimento marcado também de forma associada à expansão urbano-industrial: “a participação do Terciário no produto interno líquido manteve-se entre 55% e 53%, enquanto a porcentagem da população economicamente ativa, isto é, da força de trabalho, saltava de 24% para 38%; o Terciário configura-se, assim, como o setor que mais absorveu os incrementos da força de trabalho. Tal absorção pode, simplesmente, ser creditada à incapacidade de o setor Primário reter a população e, por oposição, à impossibilidade de os incrementos serem absorvidos pelo Secundário? A hipótese que se assume aqui é radicalmente distinta: o crescimento do Terciário, na forma que se dá, absorvendo crescentemente a força de trabalho, tanto em termos absolutos como relativos, faz parte do modo de acumulação adequado à expansão do sistema capitalista no Brasil; não se está em presença de nenhuma “inchação”, nem de nenhum segmento “marginal” da economia” (OLIVEIRA, F. 2013 P. 54). Ou seja, Chico de Oliveira demonstra como os setores da economia brasileira têm um desenvolvimento que acontece de forma combinada e não desconexa ou ao acaso.


A diferença que o autor apresenta em sua argumentação é que a economia brasileira, ainda que tenha suas especificidades, deve ser entendida como uma expansão do capitalismo como sistema econômico, ainda que não repita o modo clássico do capitalismo. O que é diferente de compreender o desenvolvimento econômico brasileiro como próprio do subdesenvolvimento.


Como exemplo dessa especificidades, Chico de Oliveira caracteriza o populismo como a forma política de uma revolução burguesa, a qual não paralisa o sistema por ter a relação externa estabelecida, é com o colapso destas relações que faz-se necessário “encontrar um novo modo de acumulação que substitua o acesso externo da economia primário-exportadora. E, para tanto, é preciso adequar antes as relações de produção. O populismo é a larga operação dessa adequação [...]” (OLIVEIRA, F. 2013 P. 64). Ainda neste paralelo com a revolução burguesa, o autor elabora que o apoio da classe trabalhadora a esse processo dirigido pelo setor industrial da burguesia, se dá na defesa da legislação trabalhista, que não deriva apenas “da pressão das massas, mas [é também] uma necessidade para a burguesia industrial evitar que a economia, após os anos de guerra e com o boom dos preços do café e de outras matérias-primas de origem agropecuária e extrativa, reverta à situação pré-anos 1930” (OLIVEIRA, F. 2013 P. 64).


O desenvolvimento do setor Secundário após 1944, com as condições de acumulação gestadas no período anterior, no que tange aos direitos trabalhistas, e ao êxodo rural acelerado, vai, por consequência, desembocar nas crises de realização dos anos subsequentes, uma vez que o salário mínimo real diminui o poder de compra da classe trabalhadora com raros períodos de recuperação. Soma-se a isso o fato de que, ao passo que a classe trabalhadora se urbaniza, o custo de reprodução da força de trabalho também sofre uma alteração substantiva e, além dos salários não acompanharem, são demandadas a industrialização e a mercantilização de outros bens de consumo. Isso implica em um novo desequilíbrio entre a classe trabalhadora e a classe burguesa, desgastando o pacto de classe forjado no período anterior.


A crise de realização que estourou em 1964 é mais agressiva aos ramos industriais com produção voltadas às classes com renda menor e não se generaliza na realização dos ramos industriais de bens duráveis, voltados às classes médias: “A crise que se gesta, repita-se, vai se dar no nível das relações de produção da base urbano-industrial, tendo como causa a assimetria da distribuição dos ganhos da produtividade e da expansão do sistema. Ela decorre da elevação à condição de contradição política principal da assimetria assinalada: serão as massas trabalhadoras urbanas que denunciarão o pacto populista, já que, sob ele, não somente não participavam dos ganhos como viam deteriorar-se o próprio nível da participação na renda nacional que já haviam alcançado” (OLIVEIRA, F. 2013 P. 88).


Essa desigualdade aprofunda-se nos períodos analisados (entre 1960 e 1970) e diz respeito a que a parcela mais pobre da classe trabalhadora pagasse pela crise, fazendo com que a elevação dos custos de reprodução da força de trabalho não fossem repassados aos custos de produção. Consequentemente, há um grau elevado de concentração da renda. Chico de Oliveira se debruça a analisar as tendências econômicas postas junto da análise conjuntural sobre o período de Ditadura Empresarial Militar: “[...] nem à burguesia se pode pedir que abra mão da perspectiva da acumulação, que é própria dela, nem às classes trabalhadoras se pede pedir que incorpore a perspectiva da acumulação que lhe é estranha. Essa situação conduz, inevitavelmente, as contradições da infraestrutura a uma posição de comando da vida política do país: a luta pelo acesso aos ganhos da produtividade por parte das classes menos privilegiadas transforma-se necessariamente em contestação ao regime, e a luta pela manutenção da perspectiva da acumulação transforma-se necessariamente em repressão” (OLIVEIRA, F. 2013 P 119).



Do Ornitorrinco


No texto de 2003, o autor procura atualizar o texto anterior e refaz alguns debates de fundo sobre o desenvolvimento capitalista no Brasil. Usa do exemplo do ornitorrinco para fazer uma metáfora desse desenvolvimento: um animal estranho, com características de outros, improvável do ponto de vista evolutivo, ainda assim se forma singular.


Aqui, reconhece a teoria do subdesenvolvimento como única teoria original frente às teorias clássicas do desenvolvimento capitalista (Adam Smith e David Ricardo) e a caracteriza como não evolucionista. No sentido de que pensar a economia das sociedades é pensar na relação dos interesses de classe, onde há uma intencionalidade, uma consciência, e no caso uma ligação com a divisão internacional do trabalho. Diferente de um processo evolucionista que não é intencional.


Ainda mantém a crítica à CEPAL por beber da fonte weberiana e não fazer uma ligação das questões econômicas de fundo, porém o tom das críticas é suavizado em relação ao primeiro texto discutido. E também tece críticas ao período stalinista que desenvolveu um certo etapismo nas questões relacionadas à revolução, que no caso da América Latina teve como consequência equívocos táticos ao pensar as questões específicas da periferia.


Dos encontros do GL


A obra de Francisco de Oliveira suscitou diversos debates entre os participantes do grupo. Principalmente pela ligação que a EFOP Vânia Bambirra, seus membros e alguns participantes das atividades já terem uma trajetória ligada à teoria marxita da dependência que, em muito, compartilha de críticas às formulações cepalinas como as apresentadas pelo autor.


De grande fôlego teórico, o primeiro texto faz uma análise precisa sobre o dualismo identificado, inclusive, em setores da esquerda, noção essa que tem repercussões até os dias atuais, seja em produções teóricas, acadêmicas, seja nas análises de conjuntura e no debate político que se desenvolve publicamente. O qual muitas vezes oscila entre a herança weberiana, criticada pelo autor, e a herança hegeliana. Ou seja, a produção, tão somente, de uma caracterização sociológica sem a análise de determinantes econômicos.


Essa separação entre o debate sociológico e o abandono da crítica à economia política e à teoria do valor, em larga medida influenciado/produzida pelos anos ditatoriais, não é capaz de explicar a realidade. Porém o afastamento das contribuições marxianas são também produzidas e reproduzidas por setores ligados à esquerda, como o Partido dos Trabalhadores, o qual se beneficiou de análises desse tipo, pois não há em seu projeto de poder e no pacto de classes produzido pelo Lulismo real intenção de romper com o modo de produção capitalista.


Nesse sentido, foi debatido também que algumas categorias da análise apresentadas no texto de 1972 não são mantidas e/ou ficam mais difusas no Ornitorrinco, escrito em 2003, já durante o primeiro governo petista. Período marcado pela expectativa de uma ruptura que nunca aconteceu ou sequer foi ensaiada pelo petismo em relação aos determinantes do capitalismo periférico ou mesmo avanços em relação à estratégia socialista. Um exemplo desta mudança é quando, no texto de 2003, é possível perceber essa expectativa quando o autor apresenta a possibilidade de uma “nova classe no sistema” e “nova função do Estado” (OLIVEIRA, F. 2013 P. 148), e no texto de 1972, ao discutir a função do Estado, o autor formula que “o papel do Estado é ‘institucionalizar’ as regras do jogo” (OLIVEIRA, F. 2013 P. 37), ou seja, interferir para favorecer a acumulação capitalista.


Algumas lacunas na análise foram apresentadas, principalmente no que tange a distância que Chico mantém com a TMD, a qual se desenvolvia teoricamente contemporaneamente à ambas produções. Esse fato não pode ser considerado um mero acaso ou desconhecimento sobre, mas uma escolha ligada aos projetos políticos de teóricos como Chico de Oliveira. Não obstante, o debate travado pelo autor tornou-se um clássico do pensamento social brasileiro pelo rigor que carrega a função que cumpriu na história de recolocar, em meio aos anos de chumbo, uma crítica marxista no rol de debates.


Referência:


Oliveira, C. 2013. Crítica à razão dualista. O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo.


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