Pandemia Covid-19 e a reinvenção do comunismo
de Slavoj Zizek
“É hora de retomar com força a injunção: socialismo ou barbárie”
Slavoj Zizek é um filósofo esloveno conhecido por suas afirmações polêmicas e leituras singulares acerca da realidade. O livro “Pandemia: Covid-19 e a reinvenção do comunismo” é constituído por um conjunto de artigos escritos no início 2020, nos quais são compartilhadas algumas hipóteses de conjuntura sobre o que essa experiência significaria para a humanidade.
Com a escolha desse título propomos aos nossos assinantes uma reflexão sobre um tema que se tornou cotidiano para nós brasileiros ao menos desde março do ano passado. Após as obras da trilogia da Estratégia Socialista, o Clube do Livro à Esquerda buscou articular as reflexões marcantes nos livros precedentes, que trataram fundamentalmente sobre a organização da classe trabalhadora, com essa obra. A tese central aqui presente é de que a catástrofe sanitária experienciada mundialmente teria colocado novamente em pauta a necessidade de se constituir uma solidariedade global, tratada por Zizek como “comunismo”.
Talvez seria interessante questionar, após as leituras das obras de Marcelo Badaró, Karl Marx e a coletânea de textos da I Internacional, se esta solidariedade da qual fala o autor esloveno se trataria, de fato, de uma experiência comunista. Contudo, o questionamento de Zizek parece ser pertinente, sobretudo no contexto brasileiro, no qual a crise sanitária e econômica graves foram ainda mais aprofundadas por uma crise no próprio poder.
No Brasil, após mais de um ano e meio experimentando a pandemia diariamente, tivemos algo muito distante do que se pode ter no horizonte de qualquer comunista. Desde o início da pandemia, a aposta do Governo foi a de lançar trabalhadores para a morte afirmando optar por salvar a “economia” e não as vidas. Hoje, nossa economia está um desastre e os óbitos somam quase 600 mil, o que demonstra que essa dicotomia nunca existiu: a forma como organizamos nossa economia é o fundamento de como as vidas poderão se organizar. Nada importante aos trabalhadores foi salvo nesse período, muito pelo contrário.
Apesar dos meses de auxílio emergencial, as condições de vida da classe trabalhadora foram piorando ao longo deste período. Alimentos básicos estão cada vez mais caros apesar de serem produzidos no Brasil. Isso ocorre por uma opção econômica: os principais setores da produção brasileira voltaram para os mercados externos em razão do aumento do dólar. A estrutura dependente somada a uma política de Estado que não prevê uma política protecionista, resulta em aumento dos preços da cesta básica no auge da pandemia. Soma-se a isso o fato de que durante a pandemia acelerou-se a venda de diversas estruturas que compõem o patrimônio nacional, como os Correios e aeroportos, selando a ausência de compromisso do Governo com as necessidades da população.
Muitos setores da economia que poderiam parar para salvar a vida dos trabalhadores não pararam em nenhum momento. A opção do governo brasileiro foi em rifar milhares em nome não apenas da economia, mas de uma aposta política na insensibilidade geral quanto a essas vidas.
Pode ser que o limite do insuportável tenha sido atingido quando houve a oportunidade de preservar a população e o Governo tenha deliberadamente optado por se recusar a comprar vacinas ou fornecer os insumos básicos de sobrevivência, como passou Manaus no início desse ano com a falta de oxigênio.
Por essas e muitas outras questões enfrentadas talvez seja difícil encarar a tese do filósofo esloveno de que a pandemia traria novamente o comunismo em pauta. Contudo, talvez seja justamente por termos experienciado a catástrofe em um nível tão profundo no Brasil que seja importante resgatar a tese de Zizek.
Uma outra questão trazida por Zizek é o aparente paradoxo sobre o papel do Estado nesse momento. Por um lado, é necessário reivindicar uma maior presença do Estado para enfrentar a pandemia, coordenando ações sanitárias e econômicas que absorvam o impacto gerado pela Covid-19. Por outro, um receio de que a pandemia fosse um pretexto para que medidas autoritárias ganhassem espaço, aumentando assim o papel do Estado. Na Hungria, Viktor Orban aproveitou o momento da pandemia para que um decreto fornecesse ao Executivo o exercício de poderes extraordinários.
No Brasil, essa questão se expressa no fato de que o Governo moveu a estrutura Estatal para salvar os capitais e, ao mesmo tempo, ampliar sua presença na vida social. Um exemplo é o caso das universidades. Com a adoção de tecnologias para adequar essas instituições ao Ensino Remoto — como por exemplo o pagamento de plataformas da Google ou recursos da Microsoft para a realizar vídeo chamadas —, os capitais ligados a essas mercadorias tiveram suas necessidades atendidas. Por outro, vê-se que essa política expõe de forma mais intensa os dados de estudantes, professores e técnicos.
Ainda que pareçam à primeira vista bastante polêmicos, os apontamentos de Zizek podem ser encarados como um convite para retomar perguntas importantes sobre a vida social hoje. Este livro sobre a Pandemia, escrito antes de que soubesse o que viria adiante, já apontava que “o desfecho mais provável da pandemia é o prevalecimento de um novo capitalismo bárbaro: muitos fracos e idosos serão sacrificados e abandonados à morte, os trabalhadores terão de aceitar um padrão muito mais baixo de vida, o controle digital de nossa vida perdurá como uma característica permanente, as distinções de classe devem se tornar ainda mais que hoje uma questão de vida e morte…” (p.133)
Este livro é, portanto, um convite para que se recupere agora, mais do que nunca, a injunção: socialismo ou barbárie.
Sobre o autor
Slavoj Zizek é um filósofo esloveno, nascido na antiga Iugoslávia. Atualmente, é professor no Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana e diretor internacional da Birkbeck, Universidade de Londres.
Sua experiência com a economia Iugoslava inspirou diversas reflexões sobre as experiências socialistas, buscando fazer uma articulação entre Marx, Hegel e Lacan. Há um esforço constante de Zizek em analisar a realidade não tanto por meio de afirmações categóricas, mas retomando questões relevantes para se pensar a política. Confira abaixo outras obras do autor:
Bem-vindo ao deserto do real (2003)
Primeiro como tragédia, depois como farsa (2005)
Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético (2013)
Violência: seis reflexões laterais (2014)
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Economia e vidas, de Maria Fernandez
Obras sugeridas
"Crise e Pandemia", de Alysson Mascaro
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