A Urbanização Brasileira
de Milton Santos
O livro eleito pela Curadoria do Clube do Livro à Esquerda neste mês, do geógrafo Milton Santos, é uma continuidade dos debates que a Escola de Formação da Classe Trabalhadora - Vânia Bambirra (EFoP) e o jornal Universidade à Esquerda realizaram neste ano sobre os conflitos urbanos. A crise econômica e sanitária atual acirra e explicita a luta de classes na cidade. Milton Santos, intelectual brasileiro de grande originalidade, é uma referência incontornável para pensar nessas questões.
A pesquisa de Milton Santos, desde a década de 1960, é resultado da deficiência encontrada em seu campo de estudo nos países subdesenvolvidos.
Foi observado pelo geógrafo que a análise da economia urbana dependente estava derivando de forma automática dos processos nos países centrais. Afastados da análise da formação espacial e sua realidade concreta, a geografia se apoiava em infinitos adjetivos para explicar o fenômeno urbano nos países subdesenvolvidos.
A primazia da forma sobre a formação observada por Santos estava relacionada com a vinculação de "conselheiro técnico" dos intelectuais. A necessidade de resolver de forma urgente os problemas urbanos recolocava os geógrafos na pressa de apresentar "remédios", e as pesquisas obtinham resultados comprometidos com esta vontade. Santos defende, por outro lado, a recuperação do papel do teórico e da necessidade de estudos sistemáticos e desinteressados das vontades hegemônicas. Para recuperar uma análise crítica, assim, Milton Santos se apoia no trabalho empírico da urbanização desigual, com um enfoque teórico a ser buscado na própria realidade: “partimos da prática humana para as teorias através dos conceitos e voltamos da teoria para práxis por intermédio dos modelos”. Milton Santos partia, em primeiro lugar, do entendimento que o espaço é a cristalização e acumulação dos diversos tempos que atravessa. Assim, a análise da formação espacial permite, de modo privilegiado, a apreensão dos processos políticos e sociais. Como ilustração, Santos comenta como a malha de transportes dos países subdesenvolvidos, financiados pelos países centrais, será, em sua industrialização futura, um fator de atraso para realizar a integração nacional. Não só como elemento estático e passivo, a formação espacial “condiciona a atividade dos homens e comanda a prática social”. Isto é observado no livro sobre A Urbanização Brasileira quando Santos apresenta a cidade como criadora de pobreza, também por sua estrutura física, que torna os habitantes das periferias ainda mais pobres no acesso de bens, serviços e cultura. Dentro desta perspectiva que atravessa toda sua obra, o livro escolhido pela Curadoria apresenta uma tentativa de síntese da formação espacial brasileira. Apoiado principalmente na obra de Florestan Fernandes, o livro demonstra como a formação social dependente resulta em uma organização espacial também dependente. Como expressão das modernizações do país na metade do século XX, a cidade corporativa subdesenvolvida, resultado da fase do capitalismo corporativo ou monopolista, é um espaço, hoje, ditado por grandes corporações estrangeiras. Assim, este livro de Milton Santos e toda sua obra pode ajudar a desvelar as escolhas e os conflitos políticos que organizam o espaço. Com um distanciamento das modas que nublam as condições materiais e o meio técnico-científico presente nas cidades, a geografia faz avançar o pensamento autônomo e revolucionário da formação sócio-espacial dependente.
Sobre o autor Milton Santos (1926-2001) foi um importante geógrafo brasileiro, pioneiro na renovação da crítica do espaço no Brasil na década de 1970. Nascido na Bahia, Santos se formou em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e concluiu sua prestigiada tese de doutorado O Centro da Cidade de Salvador pela Universidade de Estrasburgo, na França. O geógrafo passou por universidades na Europa, Estados Unidos, Canadá, Venezuela e Tanzânia como professor e pesquisador por conta do exílio decorrente do golpe militar. Esta trajetória possibilitou a ampliação de suas referências no estudo das peculiaridades da economia urbana nos países subdesenvolvidos, pesquisa que manteve durante todo este tempo. De volta ao Brasil em 1977, integrou a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA). Continuou a publicar, pesquisar e orientar estudantes até o final da sua vida. Grande parte da obra de Milton Santos, livros e coletâneas de artigos, foi editada e publicada como coleção pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) no início dos anos 2000. Estas são algumas publicações recentes:
Da totalidade ao lugar (São Paulo, Edusp, 2012)
A natureza do espaço (São Paulo, Edusp, 2009)
O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana (São Paulo, Edusp, 2008)
Por uma outra globalização (São Paulo, Record, 2008)
Texto complementar
Como complemento aos estudos sobre a cidade brasileira e os sistemas urbanos, compartilhamos um debate de conjuntura sobre o tema, que pode fornecer novos elementos para a compreensão e a crítica. Por Cláudio Ribeiro*. Publicado originalmente em 15 de março de 2021 no Universidade à Esquerda.
Obras sugeridas
Como sugestão de continuidade do estudo, selecionamos os seguintes textos sobre a questão urbana e a urbanização brasileira:
Henri Lefebvre. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999.
Milton Santos e Henri Lefebvre, filósofo marxista francês, estão constantemente desvelando estratégias e ideologias dentro dos modismos e mitologias sobre a cidade e a questão urbana. Na urgência de realizar uma reflexão sobre a urbanização desvinculada do planejamento do Estado, este livro de Lefebvre e toda sua obra relativa à cidade apresentam uma outra, e essencial, perspectiva do fenômeno urbano. Milton Santos. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana. 2ª ed. São Paulo: Editora da. Universidade de São Paulo, 2008.
Como continuidade da reflexão expressa no livro A urbanização brasileira, a obra sugerida é de um esforço original e mais detalhado sobre a especificidade da urbanização nos países subdesenvolvidos. O espaço dividido apresenta os subsistemas da economia urbana dependente e como estes se articulam no espaço. Por conta da extrema desigualdade, existiria a coexistência de um circuito superior e outro inferior, diversos no uso da tecnologia e na organização do trabalho.
Flávio Villaça. Reflexões sobre as cidades brasileiras. 1ª ed. – Editora Studio Nobel, 2012.
Lançado em 2012, o livro reúne uma coletânea de textos de Flávio Villaça sobre o espaço urbano no Brasil. O livro está separado por temas como Renda da Terra, Segregação Urbana, Centro Urbano e Plano Diretor. Em especial a última parte, sobre o Plano Diretor, revela a atualidade do pensamento de Villaça na análise das diversas faces do planejamento urbano no país e a relação contínua deste com a classe dominante e a perpetuação da segregação espacial no Brasil.
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